quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Fogo, universo, Ravel e terra vermelha



         É consenso, entre alguns especialistas no assunto, que a primeira e decisiva marca da evolução da espécie humana ocorrera quando um curioso hominídeo, furtando-se ao pavor que assaltara seus iguais ao sopé dum incandescente vulcão cenozóico, tomou em suas mãos um tição flamejante - vencendo o medo, domesticava-se, assim, a Natureza, eis o advento prático do Fogo na História. O mais belo dos quatro elementos, marca indelével do alvorecer tecnológico do Ser Humano, a chama determinou o ritmo de religiões, impôs o domínio do Homem sobre todas as coisas entre o Céu e a Terra; essa mesma chama que arde no interior de nossos corpos já pertencera a estrelas hoje desaparecidas, das quais só o distante lume chega-nos, claudicante, efêmero, mas sempre real aos olhos e à alma. De uma longínqüa manifestação astronômica nos confins do Infinito, a certeza: a Luz se propaga e atinge-nos fundo, tocando-nos quase que musicalmente, independente das distâncias...

          Só fui perceber que a Chama elevara-se no meu peito quando recebi teu último e-mail - aquele que falava das recentes juras de um amor que faiscava tão longe mas sabia existir; desconheci por completo as intermináveis horas no incômodo assento do carro-leito e fui atrás de um brilho espetacular em sonho e magia; não dei conta de quantas pontes e rios atravessei ou quantas paradas ocorreram até o lugar da terra vermelha; mas vermelho em expectativa ardia, naquela calorenta manhã dentro de uma livraria onde, distraído com esoterismo literário, só percebi a tua abordagem quando o sorriso moreno cercado por colorida roupagem e bela madeixa descolorida manifestou-se diante de mim. Não é sempre que se pode, a olho nu, testemunhar um evento cósmico de rara beleza como o que me fôra ofertado ao aproximar-se sem perguntas, num beijo espetacular que desvendava os segredos siderais envoltos em tanta espera e angústia; da mesma forma que Einstein revelara, o tempo fora da Terra flui de modo diferenciado, lento - parecia, naquele quarto de hotel para onde fomos, que o tempo desgarrara-se de nós, as camareiras e garçons e hóspedes e carros, tudo o mais voava ao nosso redor feito cometas enquanto flutuávamos na volúpia inicial de quando nos apresentamos; nem mesmo a noite fôra-nos criança, pois enquanto torres de chopes e cascatas em animações fluíam entre os convivas do restaurante, estávamos bem abrigados na Arca da Paixão, minhas mãos indóceis e convidativas perscrutavam por entre tuas coxas enquanto dirigias e alcançavam de tal forma o Ararat seguro da tua libido devidamente umedecida, que não nos restara outra alternativa senão estacionar no breu de um dos muitos parques e incendiarmos nossos corpos com o calor sagrado da entrega e loucura, você despida no meu colo urrando enquanto recitava-te a mais nova safadeza na sinfonia dos feitiches, tresloucado bolero de Ravel(*) sacudindo o carro, o clímax alcançado no exato instante em que os arautos da Moral e Bons Costumes aproximaram-se, fardados e severos em complacente reprimenda - afortunados pela clemência de Eros e Pã, saímos do bosque urbano para caírmos em outro holocausto prazeiroso... e a cada entrega do dízimo da carne, o fogo que alimentava nossas almas sedentas por eternidade aumentava mais e mais, dando-nos a certeza de que o amor necessitava da domesticação deste singular elemento da Natureza em nossos corpos e vidas. Nos confins do Universo, na distante fronteira final existente em nossos íntimos, descobrimos - exaustos, porém felizes - atingir um estágio supraevolutivo de cabal importância para a concretização de nossos sonhos quando, em silente e emocionado uníssono na rodoviária, declaramos amor eterno um pelo outro antes do adeus...

         ...não importa a distância, não são necessários quaisquer teoremas acêrca dos mistérios que envolvem a propagação da Luz no universo insondável, mesmo quando sua origem já tenha sido engolfada pelos milhões de anos-luz no Cosmo; tampouco importa se o hominídeo que habita em nós perdera o fio da humanidade quando passou do toque inocente num desconhecido tição para o laser fotônico do Hubble; o importante é que, ao final da jornada, a Luz mostrará toda a sua verdadeira beleza e magnificência, ao ofuscar nosso ceticismo quanto à necessidade em ser feliz. Exatamente a mesma felicidade demonstrada por Colombo quando, entre névoas, vislumbrara o Novo Mundo, descobri a minha América num lugar de terra vermelha feito fogo. Sob o crepitar auspicioso dum sorridente rosto moreno. Embalado pela subjugante melodia do amor tal um Bolero de Ravel(*).

4 comentários:

  1. Linda história sobre o fogo das paixões. E escrever assim sobre uma história de sexo entre duas pessoas é que toca no mais fundo de nossa emoção, faz caminhos suaves pela nossa sensualidade, não agride nossos sentidos como histórias explícitas mesmo bem escritas. Momentos, instantes dessa intensidade, quem os teve sabe o que é estar vivo. Espero pelo próximo... beijos Guri!

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  2. Jorge Luiz, já disse que, a cada texto teu, uma supresa... Colombo por certo o invejaria, logo ele, que navegou tanto para descobrir, ou melhor dizendo, redescobrir, visto que já havia sido descoberta há muito tempo, e você a descortina assim, como em um passe de mágica, rsrsrs. Haja arca, para guardar a chama da paixão....
    Grata pelo convite...Nadir

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  3. E o que dizer diante de tamanha realidade? Não há fantasia em nenhuma vírgula!Não, não há!
    E a cena prostrou-se em meu olhos nus e úmidos diante da beleza explícita de um momento único em suas vidas! Quanta entrega, quanta certeza em cada gesto, em cada frase. Quanto amor postado!
    Curvo-me e digo! Eternamente tua!
    Beijos! amo-te!

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  4. De Mestra a Cigana e unidas, pelo amor,a um lobo explicitamente enlouquecido e enlouquecedor. Vi-me neste cenário, ouvindo o clássico que mais amo e sentindo a angústia do que este som magnífico representa. Eu sou esta Cigana, encontrarei, ainda, o meu Lobo? Você é demais...

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