domingo, 19 de setembro de 2010

O Reino da Consciência


     


     Nas profundezas da agonia, Ganga Zumba dera seu último grito, Zumbi comandara a derradeira carga contra o tacão do Jorge Velho e, por três séculos, este trecho ao sul do equador ficara à mercê do imobilismo histórico-social; mesmo com notícias alvissareiras porém preocupantes da revolução de Dessalines no Haiti e do sacrifício do Honesto Abe pela liberdade negra na América, os ventos que paralisaram a Igualdade e o Humanismo trouxeram, também, as sementes do progresso imperial direto de Caiena e do Oiapoque para o Vale do Paraíba e Oeste paulista: pela ascensão do rei café, a Abolição era assunto tratado com reservas – assim como a sua implantação, lenta, gradual e segura...receita-padrão para diversas decisões políticas no Brasil ao longo das décadas perdidas com cautelas. Por fim, a Regente pôs fim ao tormento de poucos remanescentes ainda sob correntes e iniciou o encadeamento da sociedade brasileira no abismo das desigualdades respaldadas por votos de cabresto e oligarquias latifundiárias. A servidão, antes assunto de abolicionistas e filantropos, alcançou sua máxima extensão nas fábricas mal aparelhadas e desumanas; os cativos não tinham cor , idade ou sexo certos, trabalhava-se até vinte horas seguidas e não havia legislação para garantir a integridade física ou previdenciária de quem quer que fosse. Mas, ainda que o pioneirismo do caudilho de São Borja aplacasse um pouco dos abusos consolidando direitos trabalhistas, restava a desigualdade social – uma crosta muito agreste, resistente ao andar das carruagens democráticas ou tecnológicas.

       Aqui estamos, milênio e século novos, cabeças arejadas por fumegantes mudanças nas gêmeas torres do conservadorismo capitalista; a selvagem investida do neoliberalismo resultou numa forçosa abolição de privilégios, negros subindo em púlpitos antes ocupados por caubóis, pescadores de almas ameaçados em tronos de ouro por revelações madalênicas, caçadores de marajás e sorbônicos das Cayman prestando reverências ao sucesso de operários mutilados pelo preconceito...mesmo reconhecendo que ainda há consideráveis questões para equalizar a voz da Igualdade (como no caso das cotas para negros), o grito de Ganga Zumba e o sacrifício de Zumbi não foram em vão: além da abordagem puramente da negritude, ele perdura como um berro insuportável contra o abuso do homem pelo homem, a (ainda persistente) cantilena de cativos na senzala das comparações por conta da cor da pele ou, pior, o deplorável pelourinho do pedigree – se imigrante caucasiano, uralo-altaico, chinês ou semita, desmerecendo sempre os oriundos do nordeste, norte, Rio, ou seja lá onde for, neste gigantesco tumbeiro de hipocrisias chamado Brasil e sua saga pelos mares infestados de cinismo e recalques habilmente encobertos...

     ...pois, em verdade, o grito dos Palmares – e não a pena dos Positivistas – é quem realmente gravara a inscrição e as estrelas no surrado cetim da bandeira de nossa miscelânica pátria, futuro e cobiçado Reino da Consciência.

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