terça-feira, 27 de março de 2012

Surreal

Jorge Luiz da Silva Alves




Cambaleou até o banheiro. Satisfeita. Vingada.

Fechou e abriu os imensos olhos de amêndoa, ritualiscamente; como que absorvendo cada etapa do lento e saboroso processo de abdução a que se submetera. Olhou para o espelho e não se reconhecera: era ela, só que em traços cubistas, deformações de sua alma numa caleidoscópica ordem que só ele – apenas ele – distinguia. Possuía essa qualidade, esse dom, talento, magia, vodu: um xamã de penetrante espiritualidade a desnuda-la por completo. Começaria tudo de novo, que se dane o mundo e seus horários...

Fechou os olhos, desta vez irritada com o toque do fone.

Num átimo, áspera e rápida, despachou o postulante ao cargo de zelador de seus afetos; não, não o dispensou de vez, apenas aquela vez, só mais uma vez com o feiticeiro. Depois, bem... depois seriam outros quinhentos, com o incômodo Harry Potter telefonante.

Desgrenhada, voltou para o quarto. Arremessou-se na cama, arregaçando os trapos acetinados. E voltou suas preces para o céu.

Mais precisamente, no teto, onde o fincara ali, com olhos penetrantes e mágica pincelada.


Órbitas imóveis prendiam a atenção de sua alma naquele pedido insistente que emanava da flamejante presença, foto em sépia inundando sua vida com cores agressivas, provocantes, tentadoras; trabalhava cada canto do seu corpo com afinco a fim de capturar as poderosas ondas de sensual genialidade que amoldava-se novamente em sua esquálida figura feminina. Sentiu que algo saíra de seus lábios, de sua boca, garganta, coração – provavelmente, a síndica reclamaria de mais aquele escândalo, mas não era, exatamente, a hora para detalhes risíveis.

Escrava marcada pelo flagelo do delírio, arrastou-se novamente ao banheiro. Submissa. Impotente. Realizada...