quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Leitura labial na Pavuna

Jorge Luiz da Silva Alves






        Sabadaço. Metrô, fim da linha. Passarela estreita, oscilava ante o tropel de milhares de transeuntes; sob o viaduto, a fétida presença dos virulentos excluídos; rua principal, tão obstruída quanto as artérias encolesteradas dum mórbido sedentário. Calor. Onze da manhã. Por todas as ruas, vielas, becos e praças, aquela impressão (típica dos municípios da Baixada Fluminense) de que tudo está empoeirado e barrento. lanchonetes, lojas de roupas, artigos evangélicos, hotéis, motéis, pensões, cinemas...tudo espremido e saturado, autêntico formigueiro humano, qualquer movimento mais acelerado é um suplício saturniano - trabalhoso, moroso, difícil, tenso, severo. Não há luxo ou sofisticação nesse trecho rico e pulsante das fronteiras municipais: aqui, o básico embeleza, a necessidade é status, até as conversas do povo pavunense evocam, de alguma forma, a carência e obrigação de ter, ser, e querer algo da vida e das pessoas, nada da "boemia-zona norte", "luxo-zona sul" ou "descontração-zona oeste".
     Lidiane largou do trabalho cedo (milagre!); antes de apanhar a condução para casa (ela mora em Olaria), falou com um conhecido e resolveu ir até à lanchonete onde o namorado Gilmar trampeava, heróico, contra uma repentina multidão que decidira, de chôfre, encher as tripas de pastel e caldo de cana, àquela hora do dia.
    Gilmar tentava o impossível: atender os inúmeros pedidos e gesticular para Lidiane, retida na entrada pelo populacho faminto. A moça até achou graça da pantomima; só não achava engraçado o Gilmar, em sete dias na semana, não conseguir um só minuto com ela por causa do emprego.
    Irritada, ela gesticulava de volta.
    Ele, à maneira de Chaplin, atendia, olhava para ela e meneava; moto-contínuo risível.
Lidiane terminou por rir. Melhor que arrancar os cabelos (além do quê, a chapinha custara-lhe caro!). E, em expressiva mímica labial, voz bem "p'rá dentro" o quanto possível, começou a prosaica representação, walkie-talkie humano:
- Olha-tô-indo-embora-não-me-espera...
- Heeein?! - Gilmar, bloco na mão, ia sendo, cada vez mais engolido pelo maremoto de braços e pedidos.
- Porra-eu-tô-indo-embora (Lidiane, já invocada);
- Ô Lidííí, eu quero falar... peraí, mermão!, já te atendo...Ô Lidííí...
-Fui-olha-aqui-seu-mané-o-Celsinho-do-açougue-aquele-da-caxumba-gigante-quer-sair-comigo(gesto de comer)-vou-ficar-com-ele-tem-mais-tempo-dinheiro-e-um-puta-carrão(gesto de proporções)-você-é-muito-com-pli-ca-do-fui(gesto de adeus)-te-chau!!!
    E lá se foi Lidiane para Olaria, de carona com Celsinho Caxumba-Gigante, o açougueiro, para o abate de mais uma vitela largada, lá se foi Lidiane nos braços (ou patas)das saúvas humanas, num Toyota Corolla, no trânsito caótico de um bairro caótico, de um sábado abafadamente caótico, para longe de um indeciso, ocupadíssimo e atoleimado Gilmar. Lá se foi outro relacionamento na agitação frenética deste universo paralelo e diferenciado que é a Baixada Fluminense. Fim da linha.



Histórias de tarados e assassinos





Chuva fina. Venta muito.
Lindaci, dezessete anos, normalista, segura firme a inútil sombrinha barata que verga ao sabor do mau tempo. Olha ao longo da estrada, ambas as direções, aflita. A que horas chegará?
Ponto de ônibus deserto, longe do centro do bairro de Campo Grande, Rio. Lindaci tenta ficar longe de uma enorme poça formada na deprerssão do asfalto. A chuva castiga-a um pouco. Lindaci enerva-se um pouco mais. Saia de pregas bem curta, a exibir muito das grossas e reluzentes coxas negras. No outro braço, um fichário de acrílico. Confiou no solzinho mentiroso da manhã e deixou a bolsa em casa. agora, paga pela burrice atuando como acrobata. E o vento aumenta, a chuva espalha-se mais, Lindaci só está seca da cintura para cima. Suas coxas brilham, as meias de cano longo colam nas canelas. Mais que nunca, estica o pescoço ansiosa, feito Chapeuzinho nos contos infantis.
"Mas que saco!"
No poste da parada, dissolvendo-se aos poucos, um cartaz com foto em preto & branco de mais uma estudante desaparecida nas imediações. Outra que não teve chance, ou tentou e foi abatida, pensou Lindaci, olhando a foto borrada. "Se bobear, será a minha vez; será que..."
Diminui o vento, aumenta a chuva.
Ver aquele cartaz azedou de vez o seu início de tarde. Já estava de saco cheio com as recomendações sobre tarados e assassinos, tudo de mau que acontece naquele trecho outrora tão calmo. Em breve, cuidados com o coelhinho da páscoa, o E.T., papai noel. Lindaci tinha certeza que, se o tarado fosse o Murilo Rosa ou o assassino, o Clive Owen, todas as suas amigas já estariam mortas. Lembrou da Mônica, do terceiro ano; lembrou das vítimas do motoboy paulista, dos tios-sukita da vida. Algumas deixavam-se levar pela aventura, outras eram forçadas. Todas mortas. Algo precisa ser feito. Polícia? Deixa p'rá lá. Senão, nenhuma morreria. A do cartaz estaria viva - a coitada tinha oito anos, credo!, oito anos, que cidade maldita, essa! - e ela queria ficar viva. Pegou o celular e ligou: mas que porra de demora é essa, daqui a pouco danço eu...
E lá vem mais vento.
E tome chuva. Ainda estava só, naquele ermo.
A sainha de pregas levanta com a lufada, biquini minúsculo, mãos ocupadas, deixa estar, ninguém está vendo, voa, passarinha, voa...
Farol no rosto. Nem percebeu o quão perto estava, não se tem visão decente, chuva aumenta.
Peugeot 406, prateado. "Que máquina", delira baixinho Lindaci, filha de gari e enfermeira, negra, pobre, jamais entrará num carro desse, vai , moço, vai embora, não diminui não, não complica, não inventa, tú não viu nada, ou viu?, vai...
A máquina encosta bem rente às pernas de Lindaci. E começa a negociação.
Coroa educado, juba grisalha ("mulet" prata, quase igual ao carrão), oferece carona cheio de rapapés. Lindaci acha engraçado, mas explica que não precisa, o Richard Gere insiste, liga o MP3 de propósito, cheio de filantropia, cheio de amor para dar, de más intenções, Lindaci estremece de frio e fica na silenciosa torcida para que o celular toque ou chegue a cavalaria: a porta da nave espacial se abre, acabamento de couro finamente trabalhado, aroma automotivo diferente, Jamiroquai na caixa, Lancelot sorri, Guinevere cede. Pronta para abdução. Entra sem saber direito se quer ou não quer, o vento sopra mais forte, a sombrinha voa de vez das mãos, recusando-se a embarcar. A porta fecha.
No banco de trás, uma negra e enorme sacola de viagem.
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Pátio coberto do Colégio de Instrução. Day After.
Intervalo para o lanche, a tevê da cantina tem seu volume aumentado: quase a totalidade dos presentes é de moças. Boa parte delas, apreensiva; um outro grupo, indiferente. Todas ligadas no telejornal local. Que começa: "Mais uma vítima de assassinato encontrada num matagal próximo ao Colégio de..."
Queda de luz. Alvoroço.
O zelador, sem querer, desligou o disjuntor errado lá na secretaria. Corrigido o erro, só houve como ver, na tevê religada no timer, o Peugeot 406 sendo retirado do matagal. Portas abertas, objetos do porta-luvas espalhados, sangue no estofamento caro, um fichário de acrílico igual a muitos. Corpo, nada. Quer dizer...
- Olha lá! - gritou uma das alunas - Deus do Céu, é monstruoso o que fizeram...
Todos se horrorizaram com o estado do cadáver.
Menos a mocinha com a enorme sacola. E sua amiga - a que chegou "atrasada" com a carona, deixando-a à mercê das intempéries, seguindo-os de longe e aguardando o fim da emboscada.
Algo precisa ser feito.
Vá que um deles seja o tarado...