segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Shakespeare em Bangú

Jorge Luiz da Silva Alves


          De certa forma, Bangú há muito deixara de ser um lugar interessante: a antiga fábrica que servira de cenário para o filme "Olga" virou um enorme "campus" para indolentes e pernósticos; a Mocidade Independente arrastava-se melancolicamente no Grupo Especial das Escolas de Samba; o clube que já beirara o título brasileiro e amedrontara alvacentos elefantes da bola, vagueava pelas divisões subterrâneas do inferno profissional;  o poder que o zooesportismo auferira a poucos por ali e elevara o bairro à condição de viga-mestra da malandragem guanabarina, definhava junto às fortalezas erigidas em louvor à glória andradina, parasitárias, feito ervas daninhas entre os paralelepípedos desde à Francisco Real, passando pela Boiobi até os contrafortes da Pedra Branca, o ninho das águias cariocas - mil e vinte e quatro metros de altitude prepotente testemunhando o ocaso dos soberanos da contravenção. Bangú, em verdade, afogava-se nas charnecas de sua própria insignificância recente: gente amorfa, letárgica, talvez por conta do calor mais causticante da cidade. Talvez...

                ...mas, na Rua da Feira, a pasmaceira sofria um rude golpe: sediciosos por substância, Lucas e Rosane travavam mais um confronto pela audiência involuntária da vizinhança; palavreado chulo e revelações constrangedoras eram apresentados a quaisquer perambulantes sem o menor resquíscio de censura; no sobrado mais antigo do bairro, ofensas e baixo-calão transitavam livremente desde o nascer até o pôr-do-sol; e como ambos eram fidalgos de respeitáveis tribos contraventoras, o espetáculo assumia proporções shakespearianas - Ranulfo, pai de Rosane, prometera Fátima, a irmã caçula (modelito Malhação, olhos do mais puro jade e madeixas louras) para Irineu (herdeiro dos caça-níqueis em 28 cidades do interior do estado), somente se a primogênita (dona de um gênio terrível) casasse antes. Justo Rosane, carinhosamente alcunhada por todos na rua como "Maga Patalógika", desbocada e visceral feito bruxa.


         É difícil chover em Bangú, um bairro encastelado num vale arizônico; porém, Lucas surgiu na vida de Rosane trazendo chuva. E daquelas torrenciais pancadas - águas de março fechando verão, alagando ruas, bueiros em borbotões devolvendo o descaso dos ignotos quanto à mais rudimentar profilaxia urbana.  Arruinado descendente do clã das rinhas e esporões, Lucas-de-maus-bofes dispensara passistas e dondocas festivas por amor à mulher da venta virada e sem papas na língüa; o bronco sentira-se mais à vontade com o papo reto e a letra firme da desbocada. O problema: se Rosane, sozinha, já era autêntica mina terrestre no explodir convívios, com semelhante consorte pareciam sangüinários templários numa cruzada dantesca em nome do amor - a felicidade de tão excêntrico casal era motivo para cuidados terceiros, dada a poderosa manifestação de suas naturezas;  e raiva de ambos com alguém...bom: um "evento que leva à extinção", por aí. Acontecera de tudo no casamento, desde acirrado bate-boca em pleno altar com a assistência da paróquia  gargalhando gostosamente até a briga generalizada por conta de destemperos mútuos (ele, por achar o buffet uma merda; ela, por achar que uma das madrinhas era a "piranha d'estimação" do canalha...). Fosse como fosse, a vida do bairro, após aqueles esponsais pirotécnicos, jamais fôra a mesma. Tanto que Ranulfo e muita gente nem dera conta quando Fátima, a 'bela dos olhos de jade', dispensara o enfadonho Irineu por silente amor à Maria José, vulgo "Sete Léguas", buço marcado e calcanhotamente talentosa de gogó: àquela altura do campeonato, toda a atenção da família estava muito mais voltada para o foco interminável de incêndio a incinerar a Rua da Feira e todo o pachorrento bairro de Bangú: Lucas e Rosane, Petruchio e Catarina, Stratford-On-Avon abaixo do equador, quarenta graus à sombra, sob a proteção de São Jorge, padroeiro da guerra e de casais guerreiros que não se deixam conduzir pelo Paratodos-de-nós-todos. Para todos os efeitos, na próxima grita de esquina, cerquem a milhar da cobra (09); dezesseis é Leão, e vinte e dois, Tigre. Ogum e Iansã agradecem!   

2 comentários:

  1. " Em Bangu se o clube vence há na certa um feriado: comércio fechado...a torcida reunida até parece a do Fla/Flu: Bangu...Bangu... Bangu..." Seu texto fez-me lembrar coisas que já julgava perdidas no Tempo: meu " paidrasto" , pai de coração, banguense convicto, nascido neste bairro, pedindo-me para que cantasse o hino de seu clube e eu, pequenina, fazia-o sorrir de orgulho, nunca soube se por meu cantar desafinado ou se pela vitória de seu time. O fato é que ele sorria e isso era o mais importante... Hoje, Bangu resume-se a um bom shopping...a fábrica, inspiração de Noel, já não existe; sua Mocidade, orgulho da zona oeste, perdeu o brilho de sua estrela; suas noites brilhantes de formatura em seu mais famoso clube, perderam-se nas memórias; sua gente,antes protegida pela contravenção do Bem, amiga da comunidade, hoje, à merce das milícias , tornou-se acossada e se esconde; o brilho da Padre Miguel foi ofuscado, ironicamente, pelos novos chefões zootecnistas endinheirados de outras plagas...mas, apesar disso tudo, minhas melhores lembranças do bairro voltaram. Por alguns instantes sorri, voltando no Tempo. Você (junto com meu Chico) vai ser sempre o meu poeta do cotidiano, o meu lavrador de ilusões. Obrigada pelo belíssimo texto. Um beijo de sua velha amiga e mestra.

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  2. Meu comentário saiu como teu. Será a falta de uma foto? Não entendi nada, rssssss

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