sexta-feira, 8 de outubro de 2010

F O M E




  Fome
   Jorge Luiz da Silva Alves

  
Havia algo mais no ar, do que, tão somente, os aviões de carreira.
   Havia uma dupla angústia.
   Corações blindados contra uma série interminável de infortúnios e decisões duras - certas, porém duras.
   Havia a esperança de um eflúvio momentâneo de ternura naquelas palavras que surgiam, rápidas e alvissareiras, no site de mensagens. Havia a esperança. Uma dupla esperança.
   Mas... havia algo mais no ar...
   Algo pendente. Que precisava ser feito. Antes que a vida escoasse, ralo abaixo, de vez. Antes que a velhice dominasse o cérebro - pois o corpo já sucumbira à necrose do tempo - algo além da angústia, das blindagens, infortúnios e decisões. 
   Havia a fome da alma.


  
HYERONIMUS, diz: "Acho que chegou a hora de nos despedirmos."
  
DESDÊMONA, diz: "Porrrr quê?"
  
HYERONIMUS, diz: "Não temos mais o que dizer um ao outro... não percebe? Esgotamo-nos mutuamente; sugamos tudo que podíamos sugar um ao outro, não temos mais segredos. A magia some quando os segredos somem. Não é assim com os mágicos cujos segredos são-lhes desvendados?"
  
DESDÊMONA, diz: " Seja, então, o meu 'Mister M', vire-me pelo avesso, não ligo, mas...porrr quê? Logo agora, que o principal se faz necessário?"
   
HYERONIMUS, diz: "...não posso."
   
DESDÊMONA,diz: "Então, sua magia é truque, sua Fé é vã, seu amor é brisa..."
  
HYERONIMUS,diz: "Mulher, não cite as Escrituras, deixe Deus fora disso, meu amor é fogo que consome corpo e alma..."
   
DESDÊMONA, diz: "Um ano! Um ano de enigmas, de volteios, falácias e luzes em túneis sem fim: um ano que vc vai jogar na sarjeta mais abjeta se, assim, me escapares..."
   
HYERONIMUS,DIZ: "Ei-lo - e é aqui, o porquê da questão - ei-lo!"
   
DESDÊMONA, diz: "Eis, o quê?"
   
HYERONIMUS, diz: "Por quê ESCAPAR?"
   
DESDÊMONA, diz: "Ora...é só jeito de falar, quê!"
   
HYERONIMUS, diz: "O que fizestes com o pobre rapaz... acha certo?"
   
DESDÊMONA, diz: "Cássio? Ah! Ele é jovem,  não haveria, desde o início, como ficarmos...ele sabia! Além do quê já tenho problemas com Otávio, aquele ciumento, doente; outro dia, recitei Bilac, só para aturdi-lo... Estou cercada de gente chiclete, uns no interesse, outros na carência, todos me apoquentando. E só tu, que perscruta a minha alma, me é fugidio. E agora, sei vai assim, ao léu, pôxa!"
   
HYERONIMUS, diz: " Eu tenho fome de vc. Da tua alma."
   
DESDÊMONA, diz: "Então?!"    HYERONIMUS, diz: " '...somos iguais em desgraça'..."
   
DESDÊMONA, diz: " 'Blues da Piedade', Cazuza; conheço a música, não me enrola. Eu quero..."
   
HYERONIMUS, diz: "Abrir a caixa de Pandora?"
   
DESDÊMONA, diz: " Não me pega mais, 'M': o ultimato é meu. Quando? A fome não espera. Nem a vida..."
   
HYERONIMUS, diz: ".............."
    (
DESDÊMONA acabou de pedir a sua atenção!)
    (
DESDÊMONA convidou vc para uma conversa em vídeo)
   
(HYERONIMUS recusou o convite para uma conversa em vídeo)
   
DESDÊMONA, diz: " ?Que pasa, cabrón?"
   
HYERONIMUS, diz: "Aguardo..."
   
DESDÊMONA, DIZ: "????????"
    
HYERONIMUS, diz: Abra a caixa, Pandora; não é o que deseja, há tanto?"
   
DESDÊMONA, diz: "Quer... dizer..."
 
   HYERONIMUS, diz: " Open the door, my darling".
    (
 HYERONIMUS parece estar em off-line)
    (
DESDÊMONA parece estar em 'ausente')
    Havia algo mais no ar; algo que a descerebrara, a tal ponto que parecia esvoaçante mariposa, hipnótica, ante um halo de baço luzir; inquieta, olhou o último obstáculo entre ela e a provável felicidade - uma felicidade apenas ensaiada em versos, conversas, quenturas verbais e inconstâncias de ambos os lados. O receio fôra-se derretendo com o fulgor que ardia dos bosques meridionais de sua outrora plácida e tépida existência; abriu a trabalhada porta de cedro envernizado e sorriu:
    O notebook estava aberto sobre a mureta da varandinha.
    Sorriu de novo. Um sorriso meio besta.
    Pudera - foi só o que deu para fazer. Sorrir.
    "...porque sorrir de tudo é desepero". Lembrou que ele adorava Barão Vermelho e Cazuza; os versos de Frejat escoltaram-na até o próximo logradouro de sua alma, sabe-se lá onde; não tinha certeza de mais nada, ali, idiotizada frente a um notebook na varandinha, a lembrar de Frejat. E do gosto que ele demonstrara, uma vez num passeio, na feirinha da Praça XV, por lâminas de combate. Como aquela, que encerrara de vez o bate-papo e desadicionara seu endereço vital-virtual da Grande Rede dos Vertebrados...
    Havia algo mais no ar.
    Algo a fazer.
    Ele fechara o Note, retomara o aço nas mãos e, no PC-órfão que luzia toda a penumbra (do antigo solar da fotófoba - notívaga, em vazão escalarte sobre o caro tapete), começou uma nova busca. Busca por comida. Ainda tinha fome.


   
OLHOS VERDES, diz: " Oi, quem é vc...?"
   
HYERONIMUS, diz: "...tenho fome..." 

2 comentários:

  1. Fantástico: a velha fome insaciável, já que o melhor dela é ela mesma...
    Bjs.

    ResponderExcluir
  2. Jorge, este texto é simplesmente esplêndido. A temática que aborda a carência humana, ou a fome da alma, no contexto do encontro virtual, das buscas incessantes e das insatisfações pessoais. Apreciei muitíssimo, meu querido amigo.
    Um grande abraço,
    Celêdian

    ResponderExcluir