domingo, 3 de abril de 2011

Odores da humilhação

Jorge Luiz da Silva Alves



        



           A desgraça maior não era, apenas, a violência em si - instantes em que todo cerne de civilidade some, numa oportunidade selvagem para manifestar a morbidez duma alma opaca; nem mesmo a surpresa na descoberta do monstro que coabitava consigo e os seus pares em afeto e consideração, lobo lanado a perscrutar intimidades cordeiras... talvez não houvesse a tragédia em si mas pequenos dramas ocultados habilmente por um vampirismo inserido em palavras cuidadosas e gestos simpáticos incentivados por todos, só dando conta da coisa quando reparara num tímido exarcebar que ocorria em instantes etilicamente elegantes, o suficiente para que todos perdoassem-lho dos pecadilhos da etiqueta, num coquetel qualquer.  Não: a desgraça maior não era essa, apenas.
             Nem mesmo era a de gritar para um mundo que não a ouvia.
             Talvez porque o mundo temesse muito mais a alegria e descontração de uma mulher sem restrições, do que o ícone de barro que se aproveitara do sumiço repentino dos familiares (cada qual com suas urgências agendárias) e, num nicho da casa reservado à privacidade espiritual, estuprara não somente seu corpo mas sua quádrupla respeitabilidade: como avó , mãe, mulher e cunhada. Nem a memória do irmão morto fôra respeitada pela aberração testicular. E ela sabia que, por mais que se obtivesse provas, a reação inicial seria sempre a de descrédito por conta do estigma de Madalena. Já não bastava a mulher de César ser ou parecer honesta - teria de ser invicta. Morto César, morre a virtude de Pompéia.
             A desgraça maior era o odor da humilhação.
             Querer que a água que violentamente chicoteava-lhe a carne flagelada pela infâmia, tivesse os dons sobrenaturais da purificação - mas não tinha. Desejar que a toalha, felpuda e acolhedora do seu metro e sessenta, retirasse as crostas da ignomínia - mas não conseguia. Ansiava para que o acre sabor do hálito de Loki desaparecesse-lhe do pescoço e dos seios da Valkíria humilhada e marcada para sempre - debalde. Aquele cheiro a infernizava a alma, de tal modo, que parecia enlouquecer cada vez que voltava ao box para operar o impossível.
             Exatamente por isso, desmaiara aos pés da delegada-adjunta enquanto prestava queixa, dias depois.
            
             Porque, por mais que a justiça fosse feita, o cunhado-monstro encarcerado e tudo resolvido, a marca da besta já estava inserida em sua testa: o monstro de sete mil olhos acompanharia seus passos, onde quer que fosse, falasse com quem bem quisesse...e o odor da humilhação jamais seria removido de sua alma.
           

3 comentários:

  1. Certas marcas emocionais são impossiveis de serem extirpadas. E você, Gato Vadio, conseguiu mostrar isso através de uma prosa muito bem elaborada, digna de sua lavra.

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  2. há marcas que o tempo não remove! grande texto Jorge! meu carinhoso abraço

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  3. Essa marca é perpetuada feito tatuagem não requerida nem desejada. Como diria o Chico: "Você esfrega, nega, mas não lava." Mui belo, amigão. Meu abraço. Paz e bem.

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