sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Troca de Camisas

                                               Troca de Camisas
                                                           Jorge Luiz da Silva Alves





Não que Alice não gostasse de futebol; afinal, era tão aficionada quanto um americano pelo "soccer". Mas, ali estava Gustavo, com aquele jeito de quem pedia colo de mãe. E tarado por futebol, para seu desespero. Fazer o quê, mundo imperfeito, homens perfeitos, tudo por ele: até mesmo assistir aquele raio de jogo que decidiria - se bem entendera - a semifinal de um troço qualquer entre o Flamengo e o Vasco da Gama. Tudo bem; já passara da hora de procurar alguém. Precisava de alguém.
E Gustavo apareceu.
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A aparição se deu num dia de jogo. Vila Isabel, naquele remodelado barzinho defronte à famosa homenagem a Noel Rosa.
Animada turba rubro-negra chegou juntando mesas e cadeiras do trecho em que o bar avançava pelo calçamento; e ali começou ruidosa comemoração pela vitória de goleada sobre o Botafogo, alegria capitaneada por Gustavo, num surrado uniforme papagaio-de-vintém de má memória para os que se lembram do malfadado centenário do clube da Gávea. Palavrões, gracejos, exageros verbais de todas as formas alimentados pelo excesso de álcool . Freguesia mais séria pedia a conta, prevendo problemas. Outros, descontraídos, entravam no clima. Ame-os ou deixe-os; naquela noite, era impossível ignora-los. Alice que o diga: recostada no garçom de bronze(aguardando eternamente pelo pedido do compositor), observava a intensa alegria do outro lado da rua. Por breve instante seus olhares se cruzaram. E ele pôde vê-la, o rosto pequeno e sardento, cabelos ruivos, corpo sinuoso começando fino, de pequenos seios, e terminando em generosas ancas, bem desenhadas por comprida saia cigana. Sorriu. E, sem que a turba percebesse, em tres gestos discretos, mandou-lhe um beijo. E sorriu de novo, daquele jeito safado, com aqueles olhos pequenos. Alice viajou: "Ele não é desse mundo, o que é isso!" E foi embora, sorrindo também. Para desapontamento de Gustavo, que já ensaiava uma desculpa para atravessar a rua. Isso foi no início de dezembro.
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A segunda aparição se deu já na rampa de acesso às arquibancadas do Maracanã.
Ah, o amor! A necessidade do amor para continuar a viver! Por ele, desafia-se convenções,realiza-se prodígios, perpetua-se loucuras. Como aquela, de aguarda-lo próximo à placa do Milésimo Gol, a divisória das facções rivais, lado esquerdo das cabines de rádio o santuário rubro-negro, gravara o nome da torcida organizada a que ele pertencia. Chegou a pensar em ir à caráter; mas, aí, seria o cúmulo da loucura...
- Você não morre tão cedo.
Fechou os olhos contendo o susto, com a voz às suas costas. Por onde ele entrou?
Agora estava com o segundo uniforme. Antigo - não só pelo modelo, com as duas faixas nas mangas, como pelo próprio tecido, puído e apertado. Ele percebeu e explicou que era a "Relíquia do Mundial", amava aquela camisa. Ela adorava sim, o tanquinho que sanfonava a blusa. Melhor: não trouxe a corte consigo. Advinhou? Seria vidente?
Ocuparam seus lugares na arquibancada não tão cheia como em outros tempos do clássico. Resignada, assistiu ao primeiro tempo, o rubro-negro vencendo o Fluminense com certa facilidade. Vez ou outra, algum chato da Organizada solicitava sua presença degraus acima, ao que ele desconversava. No intervalo, conversas: ele, falando de suas dificuldades no serviço, seu tempo livre para o futebol e eventuais noitadas - as que valessem a pena. Ela,despejou seu embaraço para cuidar da mãe e manter a ambas ali mesmo na Vila, principalmente após um acidente de carro que quase vitimou as duas, sua recuperação rápida e, a da mãe, mais lenta, após coma profundo e risco de vida. Contou também do amor que a mãe possuía pelos assuntos de cinema e televisão, os sonhos com os galãs das telas, o glamour das atrizes, os programas favoritos. Gustavo sentiu, em cada palavra de Alice, a profunda afeição pela mãe que já não mais saía de casa por causa das seqüelas físicas e psicológicas daquele trágico evento. De tudo que pudesse fazer para deixa-la feliz. Até que o segundo tempo se reiniciara, a atenção do rapaz fôra desviada para os marmanjos do gramado e o assunto morreria por quarenta e cinco minutos.
Faltando quinze minutos para acabar o jogo,uma surpresa: Alice foi literalmente rebocada do local por um homem visível e repentinamente apaixonado.
Tanto, que lhe revelou alguns segredos do estádio que freqüentava desde os catorze anos de idade.
Um deles, uma pequena porta enferrujada no anel externo mais alto do estádio, passadiço para um trecho esquecido desde os anos cinqüenta. Nem mesmo a turma da Manutenção sabia daquele muquifo. Nem mesmo ela sabia estar preparada para tantas emoções. Mas ele, sabia. Desde que pôs os olhos naquela mocinha sardenta na praça, um domingo atrás. Desde que, entre beijos, desceu-lhe a saia, revelando mistérios gozosos.
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Pouco antes do Natal, a retribuição.
Alice matutava: "Será que estou forçando a barra?" "Ele virá?" "Será Gustavo o homem certo?" Por fim,parou de pensar. Afinal de contas, seria sim a vez dele, o sorrateiro, o forasteiro, dar suas mostras de renúncia. E, de mais a mais, ela se entregou para ele em Seu Santuário. Mais uma vez ("Oxalá fosse a última"), iria com ele ao estádio ver, desta vez, a tal semifinal entre Flamengo e Vasco. Porém,promessa é dívida: iria até sua casa firmar um compromisso, faze-la feliz eternamente. E chega de mistérios; é hora de retribuição, sim. Saber se,de fato, ele é o homem que a abastecerá de vida.
Antes de dobrar no Boulevard, ele apontou na rua à esquerda. Sorrateiro, como sempre.
"Como ele faz isso, droga?"
Pelo menos, largou de vez da corte.
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Flamengo e Vasco da Gama foi um jogo tenso. Aliás, como sempre. Provocações de ambos os lados, ameaça de invasão da Força, ameaça de invasão da Jovem Fla, a situação só ficou boa quando o gringo fez o golaço de falta para o rubro-negro. O acesso e a saída do estádio foram tranqüilos para o casal porque aquela tem sido praticamente a casa de Gustavo desde os catorze anos, conhecedor de cada atalho. Alice suspirou aliviada ao sair do Santuário.
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- Então, é aqui que você se esconde? - brincou Gustavo, boca de cupido em deboche.
- Vem, vamos conhecer a minha mãe - Alice segurou-lhe o braço,passando pelo enferrujado portão.
O amor, o amor. Só mesmo o amor, foi o que pensou Alice ao chegar em casa com Gustavo: uma miniatura de um palacete mourisco. A bem da verdade, apenas a fachada; deveria ser moda na época em que foi construída aquela casa. E em estado lastimável: qualquer passante diria estar abandonada a residência.
Num interior ainda mais decrépito, uma senhora, lenço na cabeça e feições bem enrugadas, virou-se lentamente na cadeira de balanço ao vê-los entrar.
Alice apresentou Gustavo com a alegria dos apaixonados.
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Meia hora conversando pequenas bobagens, e Gustavo pediu licença para ir ao banheiro.
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Ao sair, deparou-se com a mãe de Alice, de pé e apoiada com dificuldade numa bengala. a outra mão segurava uma revista. Fisionomia grave:
- O que aconteceu entre vocês?
- Nada que a senhora desconheça - um tom levemente pedante. Ele sabia que essa coisa de "visitar a mãe" daria rolo.
- Rapazinho,não complique o que já está mais que complicado.
- E o que estaria complicado ("A doida falou do passadiço?")?
- Minha vida. Ou o que resta dela.
A seguir, estendeu-lhe a revista já dobrada em determinada página.
Revista velha, amarelada. Gustavo lembrou-se do que Alice falara, sobre o gosto de sua mãe por tablóides do cinema e tevê. Viu, sem muita paciência, fotos e reportagens de artistas nacionais e estrangeiros. A foto maior trazia um ícone do cinema americano, camiseta apertada, a gritar o nome da amada numa cena de um filme baseado em Tennesse Williams.
- Brando... não percebe, hein,não percebe?
- Sei, estou lendo: Marlon Brando - Gustavo cruzou os fortes braços, aborrecido.
- Você gosta mesmo dela?
Gustavo levou dois ou três segundos para dizer que sim. Um tanto enfadado.
- Ela te falou do acidente? - repentinamente, os olhos da velha faiscaram.
Por um instante o rapaz pensou que a velha remoçara. Era um olhar intenso, vivo, negro como a noite.
- Falou.
- E então?
- Achei estranho.. ela...
- Ela disse tudo?
- ...disse qualquer coisa sobre a senhora ter que agradece-la por ainda estar...
A velha interrompeu a explicação e começou a falar de um modo mais intenso, tremia muito; mas aqueles olhos ainda faiscavam. Parecia estar sufocada por dentro, destilava força, desespero, tudo isso num envelhecido invólucro: uma força incomum para a idade:
- Agradecer?! A picape subiu a calçada e saiu levando três, quatro, levou a nós duas! Eu não queria sair de casa, alguma coisa dizia para não sair,mas ela sempre foi egoísta, saiu me arrastando para a rua, não queria!, ela jamais gostou de mim porque papai me amava, ele queria me levar embora daqui, ela é louca, a família dela só tem loucos varridos, bruxos... não entendi nada quando acordei, estava no hospital, tudo doía, não entendi quando olhei para ela na cama ao lado...ela era eu e eu...
A velha parou, subitamente. Boquiaberta, fitava o rapaz de camiseta apertada. Odiou a sutil ironia preparada pela jovem, tão confuso quanto ela, todos esses anos. Deixou a revista cair no chão e balbuciou:
- Quero sair... quero sair... me liberta dessa prisão, pelo amor de Deus...
Gustavo, não entendendo patavinas, observava a prisioneira desabar no chão com as mãos a socar o peito. Ia ajudar a pobre alma. Aí, sentiu a mão no seu ombro.
Virou-se.
Alice estava completamente despida. Sorrindo. Um sorriso diferente. Não era o sorriso de Alice.
- Vem, Kowalski. Vem, com sua Stella...
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Em junho, o inverno no Leblon não chega a ser exatamente como a compositora gaúcha descrevera. Na areia próxima ao canal, poucos surfistas ousavam desafiar as marolas de meio a um metro de altura - excelentes para os iniciantes do circuito - formadas pela ressaca da estação. Alice já se habituara a reconhecer amadores e profissionais pelo tempo que flanava por ali no calçamento da Delfim Moreira. Um deles chemou a atenção, não pelo desenvolto cavalgar nas ondas, mas pela semelhança de atitude ao abordar a moça deitada na areia que dava toda idéia de ser sua namorada - ainda. O tórrido beijo ali, deitados à milanesa, trouxe-lhe recordações bastante gozosas. Muitos passos além da eternidade.

Um comentário:

  1. Caramba! que suspense! Eu li atônito e maravilhado a Alice de doçura só no nome. Muito bom. Prazer conhecer sua "nova casa". Abração. paz e bem.

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