domingo, 24 de outubro de 2010

O amor de Julia nos tempos DA coléra

Jorge Luiz da Silva Alves




      Diante do espelho, Julia repassou cada gesto daquela noite fantástica, desde o olhar penetrante, intimidante, até o másculo arrebatamento através das muralhas de proibições impostas por um contrato mal redigido com um sócio beócio; sem-jeito mandou lembranças e avisou ao acastanhado observador de suas entranhas afogueadas que já não mais agüentava o minucioso exame de sua súbita pudicagem na mesa do restaurante, tanto quanto o vinho espetacular que auxiliava a metamorfose da borboleta respeitável em mariposa esgarçada por desejo e reparação dos tempos perdidos na socialização de sua natureza inquieta, trazida à tona pelo odor animal saído do tórax imberbe protegido por seda cafajestemente desabotoada diante de si, um colombiânico traficante de luxúria incendiando a renda de suas urgências por baixo da mesa. Celular desligado para que a tia magrela não a caçasse – muito menos o beócio co-acionista de seus futuros - , embrenhou-se na mata profana dos repousos d'estrada, cancelando compromissos e clientes, para se transformar na maratonista de meia distância entre a loucura e a razão, submissão e controle, regras e rasgos... tudo muito rápido e inseguro, porém deliciosamente belo, inesquecivel, único.

      Noite alta, silêncio baixo em toda casa, desde o bebê ao beócio roncador, Julia repassava, diante do espelho, cada gesto daquela noite fantástica, dançando de pegnoir diante do espelho, íntima das sombras e dos sonhos, senhora dos parcos instantes de felicidade que lhe sobrava em vinte e tantas horas de escravidão indecente do seu destino, marafona poderosa a zombar das agendas dum cafetínico e colérico mundo de rotinas e competições. O amor, contra os tempos da cólera.

2 comentários:

  1. estonteante! tem cada termo que só aqui mesmo eu poderia encontrar"seda cafajestemente desabotoada" E que cólera eh? grande abraço para ti

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  2. Por que será que sempre reconheço um pouco de mim em suas personagens femininas? Será pelo "tórax imberbe" do "supostamente cafajeste colombiano"? Não sei, mas que é curioso, lá isso é,rs...

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