quarta-feira, 8 de junho de 2011

No Balanço do Trem ( do samba)

Jorge Luiz da Silva Alves



  

  
Freud explica: a simples evocação de trens remete-me aos dourados momentos de uma época atribulada porém feliz: máquinas a diesel, puxando vagões de madeira cor de brasa subúrbio adentro, até que os primeiros e luxuriantes trechos da hévea atlântica fizessem-se vivos na força da clorofilante tonalidade de um mundo sem reservas. Mal e mal, esperávamos a estação chegar; com o reduzir da velocidade, já soltávamos, fagueiros e serelepes pelas pedras a ladear os caminhos prensados pela montanha verdejante a esparramar-se sobre as casas de veraneio...invariavelmente, alguns de nós, filhos de raiz, trazíamos adrede, os tamborins e repiques, surdos e caixas-de-guerra, para o farofear mais descontraído que a pacata Itacuruçá jamais ouvira - de Clara Guerreira à Paulinho da Viola, à bênção de Roberto Ribeiro, Mestre Marçal, Cartola e Silas de Oliveira (Pai-Nosso que estás no Olimpo dos Escolásticos, com suas maravilhas em pena e melodia) - as desornatadas ruelas dos caiçaras eram forçadas a ouvir (de tão próximas daquele mar tão verde) o brado de Momo na roda de bronzeados pela curtidora sina de plebeu festivo, versejando tudo aquilo  que cabia-lhe de direito: a cerva morna, o suor das peles, sorrisos escancarados, negras e mulatas ofertando bailados à  Iemanjá, ali tão próxima, sentindo  o aroma do frango destrinchado à mão nua e o gorgolejo do álcool e do beijo na boca lá nas águas claras, abluindo corpos e existências, em juras de amor eterno...
 

  Sigmund sabia (cara esperto!): tempo presente, subo a rolante no Metrô com a impaciência adequada a um paulistano - logo eu, carioca do Campinho! - , a fim de encontrar meus amores; estação ferroviária da Central do Brasil lotada, lá estavam ela e a bateria da Vila Isabel, a primeira a ingressar no primeiro dos quatro trens dos festejos, Dia Nacional do Samba, dia de beijo na boca, de suor, cerveja e conhaque; um sandeu empacou na bilheteria na nossa frente!, no trem, espaço exígüo, alegria sem limites: rumo à Oswaldo Cruz, versos de minha juventude eram entoados com a certeza da ressurreição, fogo de pomba espiritualmente descendo sobre nossas cabeças dentro daquela composição ferroviária, dentro de nossos corações, nós que amamos o samba mais que a própria vida - a vida, nos trens do destino, é tocada ao sabor dolente e cadenciado das marchinhas seculares de carnaval e dos vistosos sambões de competição acirrada no Sambódromo, hoje, mais do que nunca, sobre trilhos, levando-nos a uma das satrapias dos folguedos; de alguma forma, aquele austríaco barbudo, de mãe complexado, sabia de meus devaneios: meninos se amarram em trens; força, virilidade, pressa, fogo, ritmo, amor, paixão; ela sente tudo isso em mim ao desembarcar na estação onde a noite ( e o palco armado para os notáveis, os bares e as barracas abertas para repôrmos o combustível purpúreo) é somente uma criança, pouco mais que um adulto novo, que, das brumas do tempo, ressucitou na madrugada dos festejos ferroviários e, roto de farofa e areia, pôs-se a acompanhar, debalde, o rodopio da galega e dos milhares de filhos de raiz que, sob o plelilúneo, confirmavam o apostolado d'alegria; e, lá nos vagões agora vazios - não sei como nem porquê - , pude ver, nas brumas da saudade imorredoura, Clara Nunes e Cartola, Portela e Mangueira, juntos a sorrir para a plebe agradecida por tanta felicidade naquele dois de dezembro.




3 comentários:

  1. Viajei no tempo: viagem de barco até Mangaratiba e, somente a partir daí, assumíamos nosso lugar no sacolejante vagão, rumo a Santa Cruz. Vindas de Angra e , morrendo de medo das ondas do mar, fugia de Netuno com olhos fixos na floresta exuberante que, circundando o mar (ainda não existia a Rio-Santos), acompanhava pelos anos seguintes o vicejar fas flores roxas na Quaresma, margaridas primitivas, enormes e coloridas que, marcando as novas estações, acompanharam meu crescimento. Seu texto levou-me a essa época, não tão feliz, mas formadora de uma visão natural e verdejante que, mesmo com todo o "progresso", continua teimosa em mim. Seu texto foi um presente, obrigada! Bj.

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  2. Evocação de gratas lembranças, saudades imorredouras, desenhadas na paisagem do tempo e do espaço, fizeram deste texto, uma retratação da nostagia e as belas imagens construídas dos vagões de trem imersos nestas lembranças, tornaram seu texto intenso e rico.

    Um grande abraço, meu querido amigo Jorge.
    Celêdian

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  3. Se por acaso tiver uma repetição dessa apoteótica viagem, me convide que eu não gostaria de perder uma dessas de jeito nenhum! Maravilha, meu amigo! Abraço grande. Paz e bem.

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