quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Histórias de tarados e assassinos





Chuva fina. Venta muito.
Lindaci, dezessete anos, normalista, segura firme a inútil sombrinha barata que verga ao sabor do mau tempo. Olha ao longo da estrada, ambas as direções, aflita. A que horas chegará?
Ponto de ônibus deserto, longe do centro do bairro de Campo Grande, Rio. Lindaci tenta ficar longe de uma enorme poça formada na deprerssão do asfalto. A chuva castiga-a um pouco. Lindaci enerva-se um pouco mais. Saia de pregas bem curta, a exibir muito das grossas e reluzentes coxas negras. No outro braço, um fichário de acrílico. Confiou no solzinho mentiroso da manhã e deixou a bolsa em casa. agora, paga pela burrice atuando como acrobata. E o vento aumenta, a chuva espalha-se mais, Lindaci só está seca da cintura para cima. Suas coxas brilham, as meias de cano longo colam nas canelas. Mais que nunca, estica o pescoço ansiosa, feito Chapeuzinho nos contos infantis.
"Mas que saco!"
No poste da parada, dissolvendo-se aos poucos, um cartaz com foto em preto & branco de mais uma estudante desaparecida nas imediações. Outra que não teve chance, ou tentou e foi abatida, pensou Lindaci, olhando a foto borrada. "Se bobear, será a minha vez; será que..."
Diminui o vento, aumenta a chuva.
Ver aquele cartaz azedou de vez o seu início de tarde. Já estava de saco cheio com as recomendações sobre tarados e assassinos, tudo de mau que acontece naquele trecho outrora tão calmo. Em breve, cuidados com o coelhinho da páscoa, o E.T., papai noel. Lindaci tinha certeza que, se o tarado fosse o Murilo Rosa ou o assassino, o Clive Owen, todas as suas amigas já estariam mortas. Lembrou da Mônica, do terceiro ano; lembrou das vítimas do motoboy paulista, dos tios-sukita da vida. Algumas deixavam-se levar pela aventura, outras eram forçadas. Todas mortas. Algo precisa ser feito. Polícia? Deixa p'rá lá. Senão, nenhuma morreria. A do cartaz estaria viva - a coitada tinha oito anos, credo!, oito anos, que cidade maldita, essa! - e ela queria ficar viva. Pegou o celular e ligou: mas que porra de demora é essa, daqui a pouco danço eu...
E lá vem mais vento.
E tome chuva. Ainda estava só, naquele ermo.
A sainha de pregas levanta com a lufada, biquini minúsculo, mãos ocupadas, deixa estar, ninguém está vendo, voa, passarinha, voa...
Farol no rosto. Nem percebeu o quão perto estava, não se tem visão decente, chuva aumenta.
Peugeot 406, prateado. "Que máquina", delira baixinho Lindaci, filha de gari e enfermeira, negra, pobre, jamais entrará num carro desse, vai , moço, vai embora, não diminui não, não complica, não inventa, tú não viu nada, ou viu?, vai...
A máquina encosta bem rente às pernas de Lindaci. E começa a negociação.
Coroa educado, juba grisalha ("mulet" prata, quase igual ao carrão), oferece carona cheio de rapapés. Lindaci acha engraçado, mas explica que não precisa, o Richard Gere insiste, liga o MP3 de propósito, cheio de filantropia, cheio de amor para dar, de más intenções, Lindaci estremece de frio e fica na silenciosa torcida para que o celular toque ou chegue a cavalaria: a porta da nave espacial se abre, acabamento de couro finamente trabalhado, aroma automotivo diferente, Jamiroquai na caixa, Lancelot sorri, Guinevere cede. Pronta para abdução. Entra sem saber direito se quer ou não quer, o vento sopra mais forte, a sombrinha voa de vez das mãos, recusando-se a embarcar. A porta fecha.
No banco de trás, uma negra e enorme sacola de viagem.
...........................................................
Pátio coberto do Colégio de Instrução. Day After.
Intervalo para o lanche, a tevê da cantina tem seu volume aumentado: quase a totalidade dos presentes é de moças. Boa parte delas, apreensiva; um outro grupo, indiferente. Todas ligadas no telejornal local. Que começa: "Mais uma vítima de assassinato encontrada num matagal próximo ao Colégio de..."
Queda de luz. Alvoroço.
O zelador, sem querer, desligou o disjuntor errado lá na secretaria. Corrigido o erro, só houve como ver, na tevê religada no timer, o Peugeot 406 sendo retirado do matagal. Portas abertas, objetos do porta-luvas espalhados, sangue no estofamento caro, um fichário de acrílico igual a muitos. Corpo, nada. Quer dizer...
- Olha lá! - gritou uma das alunas - Deus do Céu, é monstruoso o que fizeram...
Todos se horrorizaram com o estado do cadáver.
Menos a mocinha com a enorme sacola. E sua amiga - a que chegou "atrasada" com a carona, deixando-a à mercê das intempéries, seguindo-os de longe e aguardando o fim da emboscada.
Algo precisa ser feito.
Vá que um deles seja o tarado...

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. É, vc tem razão: qem será o tarado da vez? Surpresas todos temos no dia a dia e seu texto mostra, de modo magistral , do que podemos ser capazes em determinados momentos. Talvez as normalistas estejam certas. Houve premeditação por parte do Richard Gere suburbano? Houve um planejamento por parte das moçoilas? Quem saberá? Belo roteiro, meu amigo,parabéns!!!

    ResponderExcluir