domingo, 24 de outubro de 2010

O amor de Julia nos tempos DA coléra

Jorge Luiz da Silva Alves




      Diante do espelho, Julia repassou cada gesto daquela noite fantástica, desde o olhar penetrante, intimidante, até o másculo arrebatamento através das muralhas de proibições impostas por um contrato mal redigido com um sócio beócio; sem-jeito mandou lembranças e avisou ao acastanhado observador de suas entranhas afogueadas que já não mais agüentava o minucioso exame de sua súbita pudicagem na mesa do restaurante, tanto quanto o vinho espetacular que auxiliava a metamorfose da borboleta respeitável em mariposa esgarçada por desejo e reparação dos tempos perdidos na socialização de sua natureza inquieta, trazida à tona pelo odor animal saído do tórax imberbe protegido por seda cafajestemente desabotoada diante de si, um colombiânico traficante de luxúria incendiando a renda de suas urgências por baixo da mesa. Celular desligado para que a tia magrela não a caçasse – muito menos o beócio co-acionista de seus futuros - , embrenhou-se na mata profana dos repousos d'estrada, cancelando compromissos e clientes, para se transformar na maratonista de meia distância entre a loucura e a razão, submissão e controle, regras e rasgos... tudo muito rápido e inseguro, porém deliciosamente belo, inesquecivel, único.

      Noite alta, silêncio baixo em toda casa, desde o bebê ao beócio roncador, Julia repassava, diante do espelho, cada gesto daquela noite fantástica, dançando de pegnoir diante do espelho, íntima das sombras e dos sonhos, senhora dos parcos instantes de felicidade que lhe sobrava em vinte e tantas horas de escravidão indecente do seu destino, marafona poderosa a zombar das agendas dum cafetínico e colérico mundo de rotinas e competições. O amor, contra os tempos da cólera.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Debreceni - causa mortis



          O que não faltou foi espanto; ora, o resultado da investigação indicaria o óbvio: envenenamento. Apurou-se o seguinte; brigas intestinas com a mulher (portadora não declarada dum amante rapace), com o filho (homossexual enrustido e caso dum concorrente profissional do finado) e até mesmo com a amante (preterida por pirralha estagiária no escritório); o entra-e-sai do dia-mortis fôra intenso e a chance aparecera, generosa, de várias formas, pois a vítima entretinha-se no sofá diante da tevê com a cerveja E O COPO na mesinha ao lado, ligeiramente atrás do sofá, mais as pipocas (agora esparramadas sobre o obeso cadavér) no colo. Mas, mesmo antes de iniciar a rotina pericial do crime, o que redundaria em semanas de modorrenta procura por evidências pelo óbvio, Aryosto Spínolla perguntou ao legista a provável hora da passagem do sibarita para o Além – e sorriu gostosamente, assustando a todos os presentes. Antonio Paulo, sabedor das idiossincracias do ex companheiro de Polícia Civil - forçosamente aposentado por conta de um inoperável projétil, perigosamente alojado na base do cérebro – sorriu com a resposta que provocara o espanto geral:

         “Puta que o pariu, foi Debreceni!”

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         O que não faltou foi paparicação. Aliás, uma rotina incômoda para o aposentado da Civil, acostumado a vislumbrar o óbvio no palheiro de falsas agulhas; Antõnio Paulo repetia o cerimonial (merecido) de encher O COPO (é um perigo, esquecer o Caps Lock do Notebook ligado!) do ex-agente, agora investigador particular com o melhor vinho chileno que conseguira na conceituada adega de Campo Grande, Rio; os 'sherlockholmes tupiniquins' levaram três semanas para constatar o que o clone do professor Emmet Brown – com a basta cabeleira grisalha emprestando-lhe ares de louco prestidigitador do crime – descobrira, só de olhar o cadáver refestelado no sofá. Bastou saber a hora em que o Debreceni, da Hungria, derrotara ao Barcelona dos múltiplos cracaços no Camp Nou catalão, e saber se o finado empatara toda a grana da família – e do escritório – em apostas, para ter cem por cento de certezas. Certezas que o malucão grisalho sacara logo de cara. Causa mortis? Infarto fulminante ali, no sofazão velho de guerra – mais amigo do que o bando de harpias parentais, agradecendo aos Céus tão oportuna zebra na Champions League.

        Aliás, até na Espanha... o que não faltou foi espanto! E infartos...




sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Troca de Camisas

                                               Troca de Camisas
                                                           Jorge Luiz da Silva Alves





Não que Alice não gostasse de futebol; afinal, era tão aficionada quanto um americano pelo "soccer". Mas, ali estava Gustavo, com aquele jeito de quem pedia colo de mãe. E tarado por futebol, para seu desespero. Fazer o quê, mundo imperfeito, homens perfeitos, tudo por ele: até mesmo assistir aquele raio de jogo que decidiria - se bem entendera - a semifinal de um troço qualquer entre o Flamengo e o Vasco da Gama. Tudo bem; já passara da hora de procurar alguém. Precisava de alguém.
E Gustavo apareceu.
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A aparição se deu num dia de jogo. Vila Isabel, naquele remodelado barzinho defronte à famosa homenagem a Noel Rosa.
Animada turba rubro-negra chegou juntando mesas e cadeiras do trecho em que o bar avançava pelo calçamento; e ali começou ruidosa comemoração pela vitória de goleada sobre o Botafogo, alegria capitaneada por Gustavo, num surrado uniforme papagaio-de-vintém de má memória para os que se lembram do malfadado centenário do clube da Gávea. Palavrões, gracejos, exageros verbais de todas as formas alimentados pelo excesso de álcool . Freguesia mais séria pedia a conta, prevendo problemas. Outros, descontraídos, entravam no clima. Ame-os ou deixe-os; naquela noite, era impossível ignora-los. Alice que o diga: recostada no garçom de bronze(aguardando eternamente pelo pedido do compositor), observava a intensa alegria do outro lado da rua. Por breve instante seus olhares se cruzaram. E ele pôde vê-la, o rosto pequeno e sardento, cabelos ruivos, corpo sinuoso começando fino, de pequenos seios, e terminando em generosas ancas, bem desenhadas por comprida saia cigana. Sorriu. E, sem que a turba percebesse, em tres gestos discretos, mandou-lhe um beijo. E sorriu de novo, daquele jeito safado, com aqueles olhos pequenos. Alice viajou: "Ele não é desse mundo, o que é isso!" E foi embora, sorrindo também. Para desapontamento de Gustavo, que já ensaiava uma desculpa para atravessar a rua. Isso foi no início de dezembro.
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A segunda aparição se deu já na rampa de acesso às arquibancadas do Maracanã.
Ah, o amor! A necessidade do amor para continuar a viver! Por ele, desafia-se convenções,realiza-se prodígios, perpetua-se loucuras. Como aquela, de aguarda-lo próximo à placa do Milésimo Gol, a divisória das facções rivais, lado esquerdo das cabines de rádio o santuário rubro-negro, gravara o nome da torcida organizada a que ele pertencia. Chegou a pensar em ir à caráter; mas, aí, seria o cúmulo da loucura...
- Você não morre tão cedo.
Fechou os olhos contendo o susto, com a voz às suas costas. Por onde ele entrou?
Agora estava com o segundo uniforme. Antigo - não só pelo modelo, com as duas faixas nas mangas, como pelo próprio tecido, puído e apertado. Ele percebeu e explicou que era a "Relíquia do Mundial", amava aquela camisa. Ela adorava sim, o tanquinho que sanfonava a blusa. Melhor: não trouxe a corte consigo. Advinhou? Seria vidente?
Ocuparam seus lugares na arquibancada não tão cheia como em outros tempos do clássico. Resignada, assistiu ao primeiro tempo, o rubro-negro vencendo o Fluminense com certa facilidade. Vez ou outra, algum chato da Organizada solicitava sua presença degraus acima, ao que ele desconversava. No intervalo, conversas: ele, falando de suas dificuldades no serviço, seu tempo livre para o futebol e eventuais noitadas - as que valessem a pena. Ela,despejou seu embaraço para cuidar da mãe e manter a ambas ali mesmo na Vila, principalmente após um acidente de carro que quase vitimou as duas, sua recuperação rápida e, a da mãe, mais lenta, após coma profundo e risco de vida. Contou também do amor que a mãe possuía pelos assuntos de cinema e televisão, os sonhos com os galãs das telas, o glamour das atrizes, os programas favoritos. Gustavo sentiu, em cada palavra de Alice, a profunda afeição pela mãe que já não mais saía de casa por causa das seqüelas físicas e psicológicas daquele trágico evento. De tudo que pudesse fazer para deixa-la feliz. Até que o segundo tempo se reiniciara, a atenção do rapaz fôra desviada para os marmanjos do gramado e o assunto morreria por quarenta e cinco minutos.
Faltando quinze minutos para acabar o jogo,uma surpresa: Alice foi literalmente rebocada do local por um homem visível e repentinamente apaixonado.
Tanto, que lhe revelou alguns segredos do estádio que freqüentava desde os catorze anos de idade.
Um deles, uma pequena porta enferrujada no anel externo mais alto do estádio, passadiço para um trecho esquecido desde os anos cinqüenta. Nem mesmo a turma da Manutenção sabia daquele muquifo. Nem mesmo ela sabia estar preparada para tantas emoções. Mas ele, sabia. Desde que pôs os olhos naquela mocinha sardenta na praça, um domingo atrás. Desde que, entre beijos, desceu-lhe a saia, revelando mistérios gozosos.
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Pouco antes do Natal, a retribuição.
Alice matutava: "Será que estou forçando a barra?" "Ele virá?" "Será Gustavo o homem certo?" Por fim,parou de pensar. Afinal de contas, seria sim a vez dele, o sorrateiro, o forasteiro, dar suas mostras de renúncia. E, de mais a mais, ela se entregou para ele em Seu Santuário. Mais uma vez ("Oxalá fosse a última"), iria com ele ao estádio ver, desta vez, a tal semifinal entre Flamengo e Vasco. Porém,promessa é dívida: iria até sua casa firmar um compromisso, faze-la feliz eternamente. E chega de mistérios; é hora de retribuição, sim. Saber se,de fato, ele é o homem que a abastecerá de vida.
Antes de dobrar no Boulevard, ele apontou na rua à esquerda. Sorrateiro, como sempre.
"Como ele faz isso, droga?"
Pelo menos, largou de vez da corte.
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Flamengo e Vasco da Gama foi um jogo tenso. Aliás, como sempre. Provocações de ambos os lados, ameaça de invasão da Força, ameaça de invasão da Jovem Fla, a situação só ficou boa quando o gringo fez o golaço de falta para o rubro-negro. O acesso e a saída do estádio foram tranqüilos para o casal porque aquela tem sido praticamente a casa de Gustavo desde os catorze anos, conhecedor de cada atalho. Alice suspirou aliviada ao sair do Santuário.
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- Então, é aqui que você se esconde? - brincou Gustavo, boca de cupido em deboche.
- Vem, vamos conhecer a minha mãe - Alice segurou-lhe o braço,passando pelo enferrujado portão.
O amor, o amor. Só mesmo o amor, foi o que pensou Alice ao chegar em casa com Gustavo: uma miniatura de um palacete mourisco. A bem da verdade, apenas a fachada; deveria ser moda na época em que foi construída aquela casa. E em estado lastimável: qualquer passante diria estar abandonada a residência.
Num interior ainda mais decrépito, uma senhora, lenço na cabeça e feições bem enrugadas, virou-se lentamente na cadeira de balanço ao vê-los entrar.
Alice apresentou Gustavo com a alegria dos apaixonados.
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Meia hora conversando pequenas bobagens, e Gustavo pediu licença para ir ao banheiro.
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Ao sair, deparou-se com a mãe de Alice, de pé e apoiada com dificuldade numa bengala. a outra mão segurava uma revista. Fisionomia grave:
- O que aconteceu entre vocês?
- Nada que a senhora desconheça - um tom levemente pedante. Ele sabia que essa coisa de "visitar a mãe" daria rolo.
- Rapazinho,não complique o que já está mais que complicado.
- E o que estaria complicado ("A doida falou do passadiço?")?
- Minha vida. Ou o que resta dela.
A seguir, estendeu-lhe a revista já dobrada em determinada página.
Revista velha, amarelada. Gustavo lembrou-se do que Alice falara, sobre o gosto de sua mãe por tablóides do cinema e tevê. Viu, sem muita paciência, fotos e reportagens de artistas nacionais e estrangeiros. A foto maior trazia um ícone do cinema americano, camiseta apertada, a gritar o nome da amada numa cena de um filme baseado em Tennesse Williams.
- Brando... não percebe, hein,não percebe?
- Sei, estou lendo: Marlon Brando - Gustavo cruzou os fortes braços, aborrecido.
- Você gosta mesmo dela?
Gustavo levou dois ou três segundos para dizer que sim. Um tanto enfadado.
- Ela te falou do acidente? - repentinamente, os olhos da velha faiscaram.
Por um instante o rapaz pensou que a velha remoçara. Era um olhar intenso, vivo, negro como a noite.
- Falou.
- E então?
- Achei estranho.. ela...
- Ela disse tudo?
- ...disse qualquer coisa sobre a senhora ter que agradece-la por ainda estar...
A velha interrompeu a explicação e começou a falar de um modo mais intenso, tremia muito; mas aqueles olhos ainda faiscavam. Parecia estar sufocada por dentro, destilava força, desespero, tudo isso num envelhecido invólucro: uma força incomum para a idade:
- Agradecer?! A picape subiu a calçada e saiu levando três, quatro, levou a nós duas! Eu não queria sair de casa, alguma coisa dizia para não sair,mas ela sempre foi egoísta, saiu me arrastando para a rua, não queria!, ela jamais gostou de mim porque papai me amava, ele queria me levar embora daqui, ela é louca, a família dela só tem loucos varridos, bruxos... não entendi nada quando acordei, estava no hospital, tudo doía, não entendi quando olhei para ela na cama ao lado...ela era eu e eu...
A velha parou, subitamente. Boquiaberta, fitava o rapaz de camiseta apertada. Odiou a sutil ironia preparada pela jovem, tão confuso quanto ela, todos esses anos. Deixou a revista cair no chão e balbuciou:
- Quero sair... quero sair... me liberta dessa prisão, pelo amor de Deus...
Gustavo, não entendendo patavinas, observava a prisioneira desabar no chão com as mãos a socar o peito. Ia ajudar a pobre alma. Aí, sentiu a mão no seu ombro.
Virou-se.
Alice estava completamente despida. Sorrindo. Um sorriso diferente. Não era o sorriso de Alice.
- Vem, Kowalski. Vem, com sua Stella...
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Em junho, o inverno no Leblon não chega a ser exatamente como a compositora gaúcha descrevera. Na areia próxima ao canal, poucos surfistas ousavam desafiar as marolas de meio a um metro de altura - excelentes para os iniciantes do circuito - formadas pela ressaca da estação. Alice já se habituara a reconhecer amadores e profissionais pelo tempo que flanava por ali no calçamento da Delfim Moreira. Um deles chemou a atenção, não pelo desenvolto cavalgar nas ondas, mas pela semelhança de atitude ao abordar a moça deitada na areia que dava toda idéia de ser sua namorada - ainda. O tórrido beijo ali, deitados à milanesa, trouxe-lhe recordações bastante gozosas. Muitos passos além da eternidade.

F O M E




  Fome
   Jorge Luiz da Silva Alves

  
Havia algo mais no ar, do que, tão somente, os aviões de carreira.
   Havia uma dupla angústia.
   Corações blindados contra uma série interminável de infortúnios e decisões duras - certas, porém duras.
   Havia a esperança de um eflúvio momentâneo de ternura naquelas palavras que surgiam, rápidas e alvissareiras, no site de mensagens. Havia a esperança. Uma dupla esperança.
   Mas... havia algo mais no ar...
   Algo pendente. Que precisava ser feito. Antes que a vida escoasse, ralo abaixo, de vez. Antes que a velhice dominasse o cérebro - pois o corpo já sucumbira à necrose do tempo - algo além da angústia, das blindagens, infortúnios e decisões. 
   Havia a fome da alma.


  
HYERONIMUS, diz: "Acho que chegou a hora de nos despedirmos."
  
DESDÊMONA, diz: "Porrrr quê?"
  
HYERONIMUS, diz: "Não temos mais o que dizer um ao outro... não percebe? Esgotamo-nos mutuamente; sugamos tudo que podíamos sugar um ao outro, não temos mais segredos. A magia some quando os segredos somem. Não é assim com os mágicos cujos segredos são-lhes desvendados?"
  
DESDÊMONA, diz: " Seja, então, o meu 'Mister M', vire-me pelo avesso, não ligo, mas...porrr quê? Logo agora, que o principal se faz necessário?"
   
HYERONIMUS, diz: "...não posso."
   
DESDÊMONA,diz: "Então, sua magia é truque, sua Fé é vã, seu amor é brisa..."
  
HYERONIMUS,diz: "Mulher, não cite as Escrituras, deixe Deus fora disso, meu amor é fogo que consome corpo e alma..."
   
DESDÊMONA, diz: "Um ano! Um ano de enigmas, de volteios, falácias e luzes em túneis sem fim: um ano que vc vai jogar na sarjeta mais abjeta se, assim, me escapares..."
   
HYERONIMUS,DIZ: "Ei-lo - e é aqui, o porquê da questão - ei-lo!"
   
DESDÊMONA, diz: "Eis, o quê?"
   
HYERONIMUS, diz: "Por quê ESCAPAR?"
   
DESDÊMONA, diz: "Ora...é só jeito de falar, quê!"
   
HYERONIMUS, diz: "O que fizestes com o pobre rapaz... acha certo?"
   
DESDÊMONA, diz: "Cássio? Ah! Ele é jovem,  não haveria, desde o início, como ficarmos...ele sabia! Além do quê já tenho problemas com Otávio, aquele ciumento, doente; outro dia, recitei Bilac, só para aturdi-lo... Estou cercada de gente chiclete, uns no interesse, outros na carência, todos me apoquentando. E só tu, que perscruta a minha alma, me é fugidio. E agora, sei vai assim, ao léu, pôxa!"
   
HYERONIMUS, diz: " Eu tenho fome de vc. Da tua alma."
   
DESDÊMONA, diz: "Então?!"    HYERONIMUS, diz: " '...somos iguais em desgraça'..."
   
DESDÊMONA, diz: " 'Blues da Piedade', Cazuza; conheço a música, não me enrola. Eu quero..."
   
HYERONIMUS, diz: "Abrir a caixa de Pandora?"
   
DESDÊMONA, diz: " Não me pega mais, 'M': o ultimato é meu. Quando? A fome não espera. Nem a vida..."
   
HYERONIMUS, diz: ".............."
    (
DESDÊMONA acabou de pedir a sua atenção!)
    (
DESDÊMONA convidou vc para uma conversa em vídeo)
   
(HYERONIMUS recusou o convite para uma conversa em vídeo)
   
DESDÊMONA, diz: " ?Que pasa, cabrón?"
   
HYERONIMUS, diz: "Aguardo..."
   
DESDÊMONA, DIZ: "????????"
    
HYERONIMUS, diz: Abra a caixa, Pandora; não é o que deseja, há tanto?"
   
DESDÊMONA, diz: "Quer... dizer..."
 
   HYERONIMUS, diz: " Open the door, my darling".
    (
 HYERONIMUS parece estar em off-line)
    (
DESDÊMONA parece estar em 'ausente')
    Havia algo mais no ar; algo que a descerebrara, a tal ponto que parecia esvoaçante mariposa, hipnótica, ante um halo de baço luzir; inquieta, olhou o último obstáculo entre ela e a provável felicidade - uma felicidade apenas ensaiada em versos, conversas, quenturas verbais e inconstâncias de ambos os lados. O receio fôra-se derretendo com o fulgor que ardia dos bosques meridionais de sua outrora plácida e tépida existência; abriu a trabalhada porta de cedro envernizado e sorriu:
    O notebook estava aberto sobre a mureta da varandinha.
    Sorriu de novo. Um sorriso meio besta.
    Pudera - foi só o que deu para fazer. Sorrir.
    "...porque sorrir de tudo é desepero". Lembrou que ele adorava Barão Vermelho e Cazuza; os versos de Frejat escoltaram-na até o próximo logradouro de sua alma, sabe-se lá onde; não tinha certeza de mais nada, ali, idiotizada frente a um notebook na varandinha, a lembrar de Frejat. E do gosto que ele demonstrara, uma vez num passeio, na feirinha da Praça XV, por lâminas de combate. Como aquela, que encerrara de vez o bate-papo e desadicionara seu endereço vital-virtual da Grande Rede dos Vertebrados...
    Havia algo mais no ar.
    Algo a fazer.
    Ele fechara o Note, retomara o aço nas mãos e, no PC-órfão que luzia toda a penumbra (do antigo solar da fotófoba - notívaga, em vazão escalarte sobre o caro tapete), começou uma nova busca. Busca por comida. Ainda tinha fome.


   
OLHOS VERDES, diz: " Oi, quem é vc...?"
   
HYERONIMUS, diz: "...tenho fome..." 

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Shakespeare em Bangú

Jorge Luiz da Silva Alves


          De certa forma, Bangú há muito deixara de ser um lugar interessante: a antiga fábrica que servira de cenário para o filme "Olga" virou um enorme "campus" para indolentes e pernósticos; a Mocidade Independente arrastava-se melancolicamente no Grupo Especial das Escolas de Samba; o clube que já beirara o título brasileiro e amedrontara alvacentos elefantes da bola, vagueava pelas divisões subterrâneas do inferno profissional;  o poder que o zooesportismo auferira a poucos por ali e elevara o bairro à condição de viga-mestra da malandragem guanabarina, definhava junto às fortalezas erigidas em louvor à glória andradina, parasitárias, feito ervas daninhas entre os paralelepípedos desde à Francisco Real, passando pela Boiobi até os contrafortes da Pedra Branca, o ninho das águias cariocas - mil e vinte e quatro metros de altitude prepotente testemunhando o ocaso dos soberanos da contravenção. Bangú, em verdade, afogava-se nas charnecas de sua própria insignificância recente: gente amorfa, letárgica, talvez por conta do calor mais causticante da cidade. Talvez...

                ...mas, na Rua da Feira, a pasmaceira sofria um rude golpe: sediciosos por substância, Lucas e Rosane travavam mais um confronto pela audiência involuntária da vizinhança; palavreado chulo e revelações constrangedoras eram apresentados a quaisquer perambulantes sem o menor resquíscio de censura; no sobrado mais antigo do bairro, ofensas e baixo-calão transitavam livremente desde o nascer até o pôr-do-sol; e como ambos eram fidalgos de respeitáveis tribos contraventoras, o espetáculo assumia proporções shakespearianas - Ranulfo, pai de Rosane, prometera Fátima, a irmã caçula (modelito Malhação, olhos do mais puro jade e madeixas louras) para Irineu (herdeiro dos caça-níqueis em 28 cidades do interior do estado), somente se a primogênita (dona de um gênio terrível) casasse antes. Justo Rosane, carinhosamente alcunhada por todos na rua como "Maga Patalógika", desbocada e visceral feito bruxa.


         É difícil chover em Bangú, um bairro encastelado num vale arizônico; porém, Lucas surgiu na vida de Rosane trazendo chuva. E daquelas torrenciais pancadas - águas de março fechando verão, alagando ruas, bueiros em borbotões devolvendo o descaso dos ignotos quanto à mais rudimentar profilaxia urbana.  Arruinado descendente do clã das rinhas e esporões, Lucas-de-maus-bofes dispensara passistas e dondocas festivas por amor à mulher da venta virada e sem papas na língüa; o bronco sentira-se mais à vontade com o papo reto e a letra firme da desbocada. O problema: se Rosane, sozinha, já era autêntica mina terrestre no explodir convívios, com semelhante consorte pareciam sangüinários templários numa cruzada dantesca em nome do amor - a felicidade de tão excêntrico casal era motivo para cuidados terceiros, dada a poderosa manifestação de suas naturezas;  e raiva de ambos com alguém...bom: um "evento que leva à extinção", por aí. Acontecera de tudo no casamento, desde acirrado bate-boca em pleno altar com a assistência da paróquia  gargalhando gostosamente até a briga generalizada por conta de destemperos mútuos (ele, por achar o buffet uma merda; ela, por achar que uma das madrinhas era a "piranha d'estimação" do canalha...). Fosse como fosse, a vida do bairro, após aqueles esponsais pirotécnicos, jamais fôra a mesma. Tanto que Ranulfo e muita gente nem dera conta quando Fátima, a 'bela dos olhos de jade', dispensara o enfadonho Irineu por silente amor à Maria José, vulgo "Sete Léguas", buço marcado e calcanhotamente talentosa de gogó: àquela altura do campeonato, toda a atenção da família estava muito mais voltada para o foco interminável de incêndio a incinerar a Rua da Feira e todo o pachorrento bairro de Bangú: Lucas e Rosane, Petruchio e Catarina, Stratford-On-Avon abaixo do equador, quarenta graus à sombra, sob a proteção de São Jorge, padroeiro da guerra e de casais guerreiros que não se deixam conduzir pelo Paratodos-de-nós-todos. Para todos os efeitos, na próxima grita de esquina, cerquem a milhar da cobra (09); dezesseis é Leão, e vinte e dois, Tigre. Ogum e Iansã agradecem!